domingo, 21 de março de 2010

Infância e Diversidade: um estudo sobre significações de gênero no brincar


quarta-feira, 5 de março de 2008
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Renata F. Fernandes Gomes e Beatriz Belluzzo B. Cunha


As principais instituições responsáveis pelo cuidado e educação das crianças, atualmente, em nossa sociedade, ainda são a família e a escola – invenções da modernidade – mesmo considerando as modificações que estas vieram a sofrer ao longo do tempo. Mais recentemente, ressaltamos a importância das instituições de educação infantil, creches e pré-escolas, no atendimento à primeira infância. No entanto, segundo a perspectiva dos estudos culturais, a educação não se restringe às esferas familiar e escolar. Ela se dá em muitos e diversos contextos, nos quais o conhecimento é socialmente produzido. Cinemas, teatros, igrejas, shoppings, clubes, parques e a mídia em geral fazem circular concepções do mundo que partilhamos.


Nesse sentido, a brinquedoteca é compreendida como um espaço coletivo infantil que possibilita a apropriação e a criação de conhecimentos por meio do brincar, no qual brinquedos e brincadeiras são concebidos como artefatos culturais que ofertam significações da realidade que nos cerca. Além de um contexto de aprendizagens, efetivas e afetivas, nesta pesquisa, a brinquedoteca também se revelou, como um lugar para a expressão livre e espontânea de sentimentos, emoções, atitudes e valores infantis.


Todos os contextos educativos, por sua vez, constituem-se enquanto espaços engendrados, pois buscam formar, definir e produzir sujeitos por meio de práticas discursivas e não discursivas que reproduzem e sustentam as hierarquias de gênero segundo a lógica binária homem/masculino versus mulher/feminino. Estas instituições não somente expressam as distinções de gênero, elas as instituem na medida em que gestos, condutas, símbolos e palavras produzidos nestes ambientes vão sendo aprendidos e incorporados, incessantemente, por meninos e meninas, “tornando-se parte de seus corpos” (LOURO, 2001, p. 61). Paradoxalmente, “é indispensável que reconheçamos que a escola ?os contextos educacionais? não apenas reproduz?em? ou reflete?m? as concepções de gênero que circulam na sociedade, mas que ela própria ?eles próprios? as produz?em?” (LOURO, 2001, p. 80-81), pois os significados estão em fluxo, podendo ser assimilados, apropriados, confirmados, negados, criados e transformados nas relações sociais.


Este trabalho buscou demonstrar o papel das crianças na construção social das relações de gênero na infância, mediante abordagens teóricas que as consideram como atores sociais – sociologia da infância, novos estudos da infância e a psicologia sócio-histórica – no processo de produção/reprodução dos valores culturais referentes à categoria de gênero. Segundo estas perspectivas, elas são vistas como agentes ativos nos processos de socialização que podem e devem contribuir nas análises da dinâmica social.


A capacidade ativa das crianças foi verificada nos diversos momentos lúdicos propiciados pelo brincar. Nestes momentos, elas expressavam suas opiniões a respeito do masculino e do feminino, problematizando as representações engendradas pela cultura adulta ao introduzir novas dimensões interpretativas às questões suscitadas nas relações com os pares. Nesse sentido, o brincar se evidenciou como um meio privilegiado que permite às crianças transcender as fronteiras delimitadas pela estruturação binária.


No entanto, percebemos nos discursos das educadoras e, até mesmo naqueles de algumas crianças, uma tentativa de definição das manifestações – subversivas – que não correspondem à normatização do gênero imposta por nossa sociedade. Por exemplo, interpretar o brincar de boneca de alguns meninos como uma possível tendência gay, aprisionando o sujeito dentro de um modelo identitário que se pretende estável, coerente e fixo, mesmo que divergente.


Suely Rolnik (1996) afirma que quando processos de singularização dos modos de subjetivação irrompem em cena, perturbando as configurações identitárias tidas como permanentes, estabelecidas e harmônicas, dificilmente eles encontram meios para sua existencialização na contemporaneidade. O que se observa é um esforço no sentido de perpetuação da homogeneização das identidades de gênero conforme a lógica de representação binária. Segundo a autora, esta intolerância com relação ao engendramento de diferenças exige uma modificação na política de subjetivação que está em vigor.


Os estudos feministas, numa abordagem pós-estruturalista, visam romper com estas perspectivas essencialistas, universais e inexoráveis. Segundo estes, as identidades são configurações abertas e provisórias do eu, estão continuamente se constituindo e se transformando, sendo o sujeito ativo nesse processo. Desta forma, esta postura teórica permite olhar o brincar destas crianças como expressão da diferença e da singularidade em que os gêneros podem se configurar.


Ao buscar desconstruir o pensamento dicotômico que as oposições binárias sugerem, os estudos feministas, numa abordagem pós-estruturalista, atentam para o caráter histórico da construção destas oposições e os interesses que permeiam, na medida em que se apresentam hierarquizadas. Pensar as relações entre homens e mulheres, meninos e meninas, dentro dessa lógica, restringem as possibilidades de viver/sentir/experienciar expressões da masculinidade e da feminilidade ao longo de nossa existência.


Desta forma, acreditamos que perspectivas teóricas críticas podem subsidiar as práticas educativas existentes nos contextos de atendimento à infância, no sentido de superação de três concepções correntes: as que sugerem a criança como incapaz, carente, imatura, etc; aquelas que definem o desenvolvimento infantil como algo linear, progressivo e ascendente; e as que consideram as manifestações lúdicas singulares caracterizadas como inadequadas, desvios de conduta e/ou anormalidades. É urgente a introdução de novas formas de pensamento em instituições de educação infantil que possibilitem a aceitação e a inclusão da heterogeneidade, da multiplicidade e da diversidade.


Meninos e meninas participaram ativamente no processo de construção desta pesquisa enquanto co-autores. Suas falas são legítimas e seus saberes reconhecidos por sua condição de sujeito/criança. Ao longo deste trabalho, eles/as nos ensinaram sobre prazer, ludicidade, solidariedade, cumplicidade, dor, sofrimento, amizade, enfim, sobre relações humanas. Aventurar-se pelo universo infantil é deparar-se com o inesperado, o inusitado, o improvável e, até mesmo, com o ininteligível, porém, é justamente isto que enriquece a condição humana, que nos faz vislumbrar “a invenção de novas possibilidades de vida como obra de arte” (DELEUZE, 1992, p. 120).


REFERÊNCIAS

DELEUZE, G. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbar. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
LOURO, G. L. Gênero, educação e sexualidade. Uma perspectiva pós-estruturalista. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
ROLNIK, S. Guerra dos gêneros & guerra aos gêneros. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade da Pós-Graduação de Psicologia Clínica, PUC/SP, 1996. (mimeo)
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www.portaleducacao.com.br/.../infancia-e-diversidade-um-estudo-sobre-significacoes-de-genero-no-brincar

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